Tesla Model 3

O que é um botão? O Caso Tesla Motors

Marcus Bruzzo
8 min readNov 20, 2019

Falo bastante em inter-faces. O termo aparece separado desta forma para salientar a raiz etimológica do termo que por vezes passa desapercebida; Estas são ‘faces’ que relacionam dois âmbitos (termo mais abrangente possível) efetuando a transição entre proposições (elementos gráficos) com uma certa gama de possibilidades de ação, e suas funções que por vezes são maquínicas ou programáticas (alterar a temperatura do ar-condicionado) ou por vezes inter-comunicativas (enviar mensagem “oi” para Maria).

Estas inter-faces são seções mediadoras — nunca é excessivo lembrar — no sentido em que mediam, ficam no meio de um processo, como uma lâmina de vidro entre duas pessoas. Tanto conectam quanto separam. A relação “homem-máquina” (nome da ciência) centra seus estudos entre o ser humano e a interface, mas no contexto mais amplo a partir do qual foco meus estudos, ambos são, em última instância, manifestações puramente culturais; o homem, a máquina, o outro indivíduo na outra ponta. E esta inter-face entra no jogo com uma ambivalência primordial: Ela tanto é a forma de conexão, quando é a própria divisão ou separação, pela simples condição de ser a maneira culturalmente proposta pela qual se pode comunicar com o sistema.

Lembre-se que a interface nunca será a única forma de comunicação, mas sempre a forma convencionalizada culturalmente como a ‘mais adequada’, e em referência à qual a conduta social nos compele a agir. Comprovação? Você pode acelerar seu carro pisando no acelerador como interface de comando do motor - adequada à anatomia de uma média estipulada humana - ou simplesmente acessar a central do carro com um computador e efetuar o mesmo comando. Em carros mais antigos, acessar o motor e abrir a entrada de ar causa o mesmo efeito. O acelerador é portanto uma proposição. Outro exemplo: você pode fazer transferência de dinheiro no aplicativo de celular do seu banco, mas ele é uma interface útil enquanto for mais adequada do que ligar na operadora do cartão, ou ainda, ir presencialmente a uma agência. São todas interfaces, o app, o atendimento telefônico, a agência.

Portanto, parta do pressuposto de que toda interface é apenas uma forma de proposição de uso, e que toda interface possui maneiras alternativas de controle das mesmas funções, embora nos condicionemos a conhecer os controles apenas por meio das interfaces que nos são ensinadas. (Aqui entra a pesquisa crítica do UX, à qual devo retornar em um futuro breve.)

Telas ou botões físicos?

Já são bastante conhecidos os carros da Tesla — ao menos aos que também possam se interessar por este ensaio — de forma que não vou me ater a descrevê-los completamente. Basta que tenhamos em mente que são veículos elétricos, completamente integrados a um aplicativo que permite controle remoto de funções do veículo, e que em seu painel, todos os botões físicos foram retirados versão após versão, e postos dentro de um sistema apresentado em uma única tela central. Estes são os pontos cruciais.

Interior do Tesla Model 3. Sem botões físicos, exceto os que constam no voltante.

Nos modelos da marca, é notável que o uso de um sistema com interface soft permite uma gama extremamente ampla de controles que surgem por demanda, por exemplo: Abrir e fechar as portas do veículo pelo sistema (alguns modelos), na mesma em que é possível assistir Netflix ou Youtube (liberados na última atualização), há jogos no veículo disponibilizados pela empresa, se pode controlar a temperatura dos bancos ou do ar-condicionado, ou traçar a rota para navegação; em uma única tela.

A quantidade de combinações de controles físicos, somam 17 botões e uma alavanca na porta deste veículo da marca Mercedes-benz.

Caso estes comandos fossem físicos, para cada função destas contaríamos com pelo menos dois botões em dois verbos distintos (abrir-fechar, aumentar-diminuir, iniciar-parar, etc.). Esta é a demanda comum do design de painéis de carros até hoje, cujas funções estejam em interfaces físicas que exijam opções acionadas ao toque. Na foto ao lado, dos 17 botões que aparecem em uma única porta, 11 são funções exclusivas do banco, e embora ocupem espaço físico fixo, suas funções se restrigem a uma parcela mínima do tempo total de uso do veículo. A indústria tem tentado contornar este problema com estratégias como múltiplos cliques sobre um mesmo botão para alterar seu status, ou botões de acionamento de duas fases como os botões das janelas em que se puxa para cima ou para baixo, e ele para na posição neutra central. São saídas que economizaram muito espaço e de usabilidade, aumentando as funções de um único botão estacionário, mas que ainda revelam um problema sério das interfaces físicas; quanto mais funcionalidades, mais complicada fica a interface, ao ponto em que ter menos funções acaba sendo algo positivo pela “praticidade”.

BOEING 737. Do lado esquerdo, a cabine anterior sem telas, do lado direito, as novas cabines do mesmo modelo.

Interfaces estacionárias com redundância eram muito comuns em aviões, pela solidez literal da execução de sua função, mas mesmo nesta indústria, a maleabilidade das interfaces soft tem inserido mais e mais telas como interface de comando. Quando estas alterações surgem em uma indústria tão pragmática quanto a da aviação, é necessário entender que trata-se de uma mudança geral, e da perspectiva de pesquisas em UX, precisamos entender que nesta mudança há critérios tanto econômicos, quanto de usabilidade ou mesmo culturais envolvidos.

A Tesla é a imagem desta demanda; reduziu toda a superfície de comandos estacionários a uma tela central de ótima capacitância e resposta rápida, com um processador próprio que executa 36 trilhões de operações por segundo. Fora dois processadores dedicados a funções de AI, com seu LIDAR.

Problemas desta decisão

A Norman Nielsen Group, de Don Norman (criador do UX), a empresa de assistência de design mais famosa do mundo, fez uma completa série de testes com o novo sistema (versão 9) da Tesla, e identificou o que seriam os problemas que, de fato, não se devem à empresa em si, mas à escolha de “liquefazer” todos os botões físicos. O primeiro ponto é o deslocamento de todas as funções que seriam contextuais a um único ponto central na cabine.

Os carros ainda não são completamente autônomos, e portanto, funções de controle do veículo como o velocímetro, bateria, consumo relativo, e outras funções poderiam estar à frente do condutor e não estão. A NNGroup lembra que a posição de pegada no volante se alterou nas últimas décadas de 10–2 (em referência à posição das horas no relógio) para 9–3 atualmente, considerada mais segura. Isso favorece a velocidade de acesso dos controles centrais, mas na Tesla, a necessidade de uma interface contextual, que se ajusta por demanda, fez com que acessar uma função muitas vezes exija mais de um toque, fora a atenção focada na transformação da interface neste processo. Embora tenham disponibilizado uma série de funções primárias na base da tela, como temperatura, música, navegação e bancos, todas elas trazem um menu em swipe com suas funções. Ainda, ressalta a NNGroup, os botões estão menores do que o recomendado para o toque, com tamanho físico de 1cmx1cm.

Imagem Tesla

Além disso, há a filosofia da Tesla de manter o mapa presente como pano de fundo de todas as condições em que a tela esteja, dada a ambição de que os veículos estejam conectados em uma malha urbana constante. Esta função primordial retira espaço de outras funções como controle de mídia por exemplo. Nos testes, o tempo de compreensão da tela foi muito elevado, por um fator muito simples; cada nova ação, traz uma configuração visual nova que exige compreensão, e a isso mantém a curva de aprendizado alta por muito tempo. Imagine que cada função do seu carro abrisse um novo site, que exigisse que você encontrasse os botões e interpretasse uma nova interface a todo momento.

A Tesla criou um tablet ideal, mas há uma questão: Usar um tablet é bem diferente de usar um tablet enquanto dirige.

Duas questões fundamentais

Centralização

Nenhum monopólio é bom. Podemos dizer que a centralização dos comandos em telas não é algo ruim, na verdade, tem benefícios financeiros, práticos e culturais muito grandes. Mas a questão com a Tesla parece ser a centralização em uma única tela. As telas podem ter frações de um mesmo sistema integrado, mas adaptado a cada posição. Uma tela à frente do condutor informa sobre o carro e navegação, a central com multimídia e comandos avançados, ao lado da porta, retrovisor eletrônico e informação sobre outros veículos, ultrapassagem, faixas e etc. Nesta centralização abrupta, o portal The Verge apelidou o tesla de um “tablet com rodas”.

Hápticos/Táteis

A tela é uma interface só, isso quer dizer que ela baseia todo o sistema comunicativo na dimensão sensorial da visão. Os botões físicos são táteis, e embora pareçam simples, são mais adequados e complexos do que telas, permitindo comunicação por toque. Enquanto se dirige, pode-se colocar a mão sobre um botão, sentir seu formato, identificar seu status atual, movê-lo e receber respostas dos estágios com os cliques, fora o reforço sonoro da ação. A tela da Tesla não poderá ser utilizada sem que se olhe diretamente para ela, não há volumes, e nesta última versão, não há retorno háptico. O afunilamento da economia cognitiva em um único estímulo ignora a capacidade humana de comunicação tátil, por exemplo.

Nas palavras do Norman Nielsen Group,

Carros modernos são computadores poderosos. Eles aumentam as capacidades cognitivas e habilidades físicas dos condutores com informação coletada por uma variedade de sensores; eles podem expandir a experiência de direção com uma pletora de elementos que estão a um toque de distância. Ainda assim, nada disso de fato acontecerá até que os designers de carros considerem todas as décadas de desenvolvimento de interfaces de computadores e princípios bem conhecidos de usabilidade e psicologia humana.

E acrescento; nada disso ocorrerá até que as demais dimensões comunicativas sejam abarcadas. Por isso devemos focar em design de experiência, porque vai muito além das interfaces visuais. E isso se dá pela compreensão de que o ser humano comunica-se com o corpo todo, que o toque e ou áudio têm a mesma influência comunicativa que interfaces estritamente visuais. Além disso, as interfaces em telas realmente precisam aprender os princípios já bem conhecidos dos velhos botões. Se todas as interfaces (visuais, táteis, sonoras) forem bem distribuídas em telas contextuais, deve-se aliviar a carga cognitiva da tradução ininterrupta de um único estímulo visual — talvez, o maior erro da Tesla.

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Marcus Bruzzo
Marcus Bruzzo

Written by Marcus Bruzzo

Master Semiotics of Culture (Tartu, Estonia), Meios e Processos ECA-USP. <<Coord. Design Experiência Digital FTD Educação >> {culture, communication technology}

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