O desafio de recuperar os bens comuns do capitalismo

Tradução moralmente obrigatória do artigo de Dirk Philipsen em Aeon

Marcus Bruzzo
18 min readOct 23, 2020

A realidade vigente é mais uma vez tentar romper a agonia de uma pandemia mundial e a desumanidade duradoura da opressão racista. Trabalhadores da saúde arriscando suas vidas pelos outros, redes de ajuda mútua capacitando comunidades, fazendeiros entregando alimentos para clientes em quarentena, mães formando filas para proteger os jovens da violência policial: estamos nesta vida juntos. Nós — jovens e idosos, cidadãos e imigrantes — fazemos melhor quando colaboramos. Na verdade, nossa única maneira de sobreviver é nos protegermos, ao mesmo tempo que protegemos a resiliência e a diversidade deste planeta que chamamos de lar.

Como insight, isso não é novo ou surpreendente. Os antropólogos há muito nos dizem que, como uma espécie nem particularmente forte, nem rápida, os humanos sobreviveram por causa de nossa capacidade única de criar e cooperar. “Todo o nosso prosperar é mútuo”; é como o estudioso indígena Edgar Villanueva capturou a sabedoria milenar em seu livro Decolonizing Wealth (2018). O que é novo é até que ponto tantos líderes cívicos e corporativos — às vezes culturas inteiras — perderam de vista nossa mais preciosa qualidade coletiva.

Essa perda está enraizada, em grande parte, na tragédia do privado — essa noção que mudou, em pouco tempo, de uma ideia curiosa para a ideologia do sistema econômico global. Ela reivindicava o egoísmo, a ganância e a propriedade privada como as verdadeiras sementes do progresso. Na verdade, o conceito errado que muitos leitores provavelmente ouviram sob o nome de “a tragédia dos bens comuns” tem suas origens na suposição de que o interesse privado é o guia naturalmente predominante para a ação humana. A verdadeira tragédia, entretanto, não está nos bens comuns, mas no privado. É o privado que produz violência, destruição e exclusão. Com milhares de anos de sabedoria cultural, a ideia do privado separa, explora e esgota os que vivem sob sua fria lógica operacional.

Nas sociedades pré-industriais, a cooperação representava uma nítida necessidade de sobrevivência. No entanto, a compreensão de que um todo saudável é maior do que suas partes nunca parou de se mostrar às culturas. Ele incorpora os pilares do Cristianismo tanto quanto a Idade de Ouro Islâmica, o Iluminismo ou o New Deal. Em meio a uma depressão global, o presidente dos EUA Franklin D Roosevelt evocou um “pacto industrial” — um compromisso com salários dignos e o direito ao trabalho para todos. Durante a década de 1960, Martin Luther King Jr deu voz à ideia mais ampla ao dizer que ninguém é livre até que sejamos todos livres. No Dia da Terra de 1970, o senador dos EUA Edmund Muskie proclamou que a única sociedade a sobreviver é aquela que “não tolera favelas para alguns e casas decentes para outros … ar puro para alguns e sujeira para outros”. Devemos chamar essas ideias do que são — percepções civilizacionais centrais. A prosperidade social e econômica depende do bem-estar de todos, não apenas de alguns.

As culturas que fundamentalmente se afastaram dessa consciência geralmente não se saíram bem, a longo prazo, do Império Romano ao nazismo ou ao stalinismo. Será o capitalismo neoliberal o próximo? Em vez de reconhecer a infinita variedade de coisas que tinham que estar no lugar para tornar nossas realizações individuais possíveis, ele é baseado na afirmação imatura de que nossos privilégios são “conquistados”, tornados possíveis principalmente pela iniciativa privada.

Mas que bela questão! Onde estaríamos sem o trabalho e os cuidados dos outros? Sem a comida do fazendeiro? Sem eletricidade, moradia, estradas, saúde, educação, acesso à informação e centenas de outras coisas que nos são fornecidas, dia após dia, muitas vezes de graça, e rotineiramente, sem que saibamos o que está por trás da existência de cada uma destas coisas? Vendo a nós mesmos como indivíduos aparentemente livres, é tanto fácil quanto conveniente ceder à ilusão de que “eu construí tudo isso. Eu trabalhei para tudo isso. Eu conquistei”

O outro lado doloroso são os bilhões daqueles que, não por culpa própria, ficaram com a ponta curta do palito.

Aqueles que nasceram no país errado, de pais errados, no distrito escolar errado — “errado” por nenhuma outra razão além de que a cor de sua pele ou a religião, ou ainda seus talentos, não foram favorecidos.

O foco limitado no individual pode ser visto aqui como servindo abertamente ao poder: Se aqueles que têm privilégios e riqueza presumivelmente os ganharam, então aqueles que têm dor e sofrimento devem merecê-los.

O pensamento econômico padrão semeia e alimenta o medo subjacente

Enquanto isso, velhos e jovens sentem a perda de uma herança cultural que transcendia o privado, um propósito além do marketing pessoal. Provavelmente tememos — e com razão — que, em toda questão pessoal, não possamos mais contar com os outros para estarem lá para nós, para nos acompanhar em um trabalho consistente, uma comunidade estável, um pouco de amor e gentileza. Temos medo das mudanças climáticas, que são consequência última de nosso consumo voraz. Tememos a solidão e a depressão, muito trabalho, perda de empregos, dívidas. Sentimos, e frequentemente experimentamos, que quando as pessoas cuidam de si mesmas, trazem à tona o que há de pior em nós — eu contra você, uma tribo contra a outra. Muitos sentem isso simplesmente como uma cultura em desmantelamento.

O pensamento econômico padrão semeia e alimenta o medo subjacente ao instruir que todos estejamos em uma corrida para competir por recursos limitados. A maioria das definições da economia dominante são baseadas em alguma versão da definição de Lionel Robbin de 1932 como a “alocação eficiente de recursos escassos”. A resposta para a escassez, associada ao presumido “desejo por mais” das pessoas é, obviamente: Continuar produzindo coisas.

Não surpreendentemente, a estrela-guia para o sucesso, tanto de formuladores de políticas quanto de economistas ao redor do mundo, é uma métrica crua, embora conveniente — o PIB — que não faz nada além de contar indiscriminadamente a produção final (mais coisas), independentemente de serem boas ou ruins, criem bem-estar ou danos, e muito embora seu crescimento contínuo seja simplesmente insustentável.

É uma lógica circular: (1) A escassez faz com que as pessoas tenham necessidades infinitas, então a economia precisa crescer; (2) Para que a economia cresça, as pessoas precisam ter cada vez mais necessidades. Esse pensamento domina o campo da economia e grande parte da cultura contemporânea: O homem (sim, essas ideias vêm predominantemente dos homens) como o otimizador infinito do interesse próprio; pessoas reduzidas a produtores e consumidores; todos os aspectos da vida que vão além do mero acúmulo de coisas — moralidade, alegria, cuidado — confinados ao jardim de infância, ficção e o ocasional curso de ética no colégio ou faculdade. O resultado é o que Nicholas Kristof no The New York Times chama de “miopia moral”, que ameaça desabar sob uma pilha crescente de coisas.

Disfunções como mudanças climáticas, racismo e desigualdade não são fatores independentes, e que ocorrem naturalmente de forma distinta da vida social. Pelo contrário, eles são baseados nas ficções e falhas do “privado” que mais tarde se transformaram em sistemas que agora governam nossas vidas.

Na realidade, nós colaboramos, organizamos juntos, mostramos amor e solidariedade (como documentou a ganhadora do Nobel Elinor Ostrom em seu livro Governing the Commons 1990) — e no processo, invariavelmente, criamos regras e valores comuns que organizam a vida comunal. Contamos com a sociedade, comunidade, família, dia após dia. E, no entanto, a trágica desconexão entre nossa realidade vivida (embora às vezes conturbada) e a ideologia dominante, celebrando “o privado” em livros, jornais e filmes de Hollywood, muitas vezes nos escapa.

Quando grandes corporações, dirigidas por pessoas que pregam o evangelho do mercado e ganhos privados, precisam do público para socorrê-las, poucos no poder levantam a questão mais óbvia: por que você precisa de dinheiro público para salvá-lo, quando você deveria estar se levantando sozinho?

Uma questão mais profunda poderia ser: Por que riqueza e privilégios — em grande parte construídos sobre o trabalho livre da natureza e o trabalho barato dos trabalhadores — devem ser resgatados quando em apuros, pelas mesmas pessoas que de outra forma seriam consideradas “descartáveis”?

A versão particular do “privado como propriedade” provavelmente tem suas origens no Império Romano. Ele vem com a noção de domínio absoluto — denotando o direito de ter controle total sobre sua propriedade. Inicialmente, tal domínio era exercido pelo chefe de família masculino, tanto sobre coisas como sobre pessoas. Ou, mais precisamente, sobre coisas, mas também sobre pessoas que (naquela que foi possivelmente a primeira tomada de poder legal em nome do privado) vieram para ser definidas como coisas (filhos, escravos).

Quando George Floyd foi morto em 25 de maio de 2020, tornou-se globalmente visível, mais uma vez, que a maioria das pessoas — pobres, jovens, as mais velhas, as negras, pardas, as não-homens — permanece disponível ao regime de interesse privado. Com demasiada frequência, são violentados sob interesses disfarçados da propriedade privada, em violência perpetrada pelos encarregados de a defender, a polícia. O erro dos vândalos em demonstrações recentes, como os satiristas apontaram, foi que eles não saquearam em nome de firmas de private equity. Colocando de outra forma: Para que a lei não coloque a bota em seu pescoço, seu roubo tem que vir à escala de colarinho branco e com a sanção do poder.

A tragédia do privado, em suma, não vem do privado como indivíduo, mas do privado como propriedade, como controle sobre a terra, recursos e outros. Possuir sempre foi menos uma questão de proteção de si mesmo do que de exclusão dos outros. Como tal, é uma violação lógica do “outro eu” ou, na verdade, de outros seres. Você contra mim — seu ganho como minha perda.

Ao longo das gerações, o roubo aberto de patrimônio comum tornou-se disfarçado de propriedade privada

Para ilustrar: Nenhum evento, exceto a guerra, criou tanta miséria em um país como a Inglaterra quanto aqueles com acesso à violência (armas, leis, riqueza) privatizaram e cercaram as terras que as pessoas precisavam para sobreviver. O processo veio a ser conhecido como “cerco dos comuns”, mas representou um roubo sangrento em grande escala, permitindo que uma pequena porcentagem de pessoas excluísse a maioria do acesso a um patrimônio comum. O resultado foi desde então naturalizado e replicado em todo o mundo, e santificado na lei como “os direitos da propriedade privada”.

Nenhum corpo foi mais violado do que aqueles brutalizados como escravos ou servos, tudo em nome do lucro e — como autores como Kidada Williams documentaram em detalhes meticulosos — santificados por um regime vicioso de propriedade privada. O racismo, como nos lembram pensadores de C L R James a Angela Davis a Barbara e Karen Fields, é um alicerce essencial para o sistema de capital privado.

Nenhuma forma de governo, social ou econômica, tem saqueado os recursos fornecidos pela natureza tanto quanto a da propriedade privada (embora a propriedade estatal [das experiências em nome do] comunismo tenha chegado perto).

Nenhuma circunstância solapa os direitos e liberdades políticas hoje mais do que a pobreza — a exclusão violenta dos direitos humanos essenciais: Acesso ao trabalho, renda e recursos vitais.

O privado como domínio sobre a propriedade viola inevitavelmente o privado como integridade e liberdade pessoais. Os humanos se tornam objetos — meu escravo, meu trabalhador, meu filho — e não têm acesso ao essencial da vida. Assim privado de independência, o “privado” reduz a liberdade da maioria, todos aqueles sem acesso a capital suficiente, às escolhas estreitas fornecidas pelo mercado a serviço da propriedade privada — eles possuem, nas palavras de Amartya Sen, efetivamente negada “a capacidade de realizar todo o seu potencial como ser humano “.

Ao longo das gerações, o roubo aberto do patrimônio comum tornou-se disfarçado de propriedade privada, escondendo-se por trás de contratos legais e da fria ficção do dinheiro como riqueza. A gente se acostuma com os costumes, sugere essa história, mesmo quando eles desafiam o pensamento racional. Os lutadores da liberdade originais contra o cerco das terras comuns, grupos como ‘os Coveiros’, eram notavelmente menos mistificados do que seus compatriotas modernos: Ninguém é livre, eles declararam em 1649, “até os pobres … têm uma permissão plena para almejar e laborar sobre os bens comuns”. Thomas Jefferson (o lutador pela liberdade, não o proprietário de escravos) teria entendido a lógica — assim como Toussaint L’Ouverture ou Nelson Mandela.

Legalmente “liberados” para vender sua força de trabalho, os sem-terra foram, em vez disso, reduzidos a um estado de pobreza abjeta, onde se tornaram as “massas” relutantes que povoavam as fábricas satânicas da industrialização inicial — a liberdade como uma escolha entre miséria ou morte.

A desculpa para a crueldade da exclusão e exploração dos outros em nome do interesse privado foi sempre a mesma: A perspectiva de um futuro melhor para todos. Hoje, devemos perguntar: Conseguimos? É uma pergunta muito mais difícil de responder do que apologistas modernos como Steven Pinker querem que acreditemos. Sim, por qualquer medida disponível, o capitalismo (baseado no interesse privado) gerou riqueza e conhecimento sem precedentes.

Essa criação explosiva de riqueza, entretanto, veio, e continua a vir, com um preço íngreme e exponencialmente crescente. Alimentado por combustíveis fósseis, está esgotando e consumindo o planeta. Fundamentado na extração e na exploração, o progresso capitalista carrega consigo violência e destruição crescentes. O outro lado da civilização, nas palavras de Walter Benjamin, parece ser “um documento de barbárie”. Talvez seja finalmente hora de reconhecer a carnificina que criou a riqueza.

No início, as economias modernas conseguiram fornecer mais calorias a um paciente faminto. Com base nesse sucesso inicial, a profissão de economista (sem dúvida baseada em modelos matemáticos sofisticados) concluiu que mais calorias melhorariam para sempre a saúde. Agora lidando com um paciente mortalmente obeso, nossos líderes e conselheiros econômicos teimosamente resistem a reconhecer a pergunta óbvia: Se continuarmos em um regime de calorias que aumenta exponencialmente, não incapacitaremos, se não matarmos, o paciente — Nós mesmos?

Muito se tem falado sobre como a corrida incessante por mais, maior e mais rápido, também levou a uma crise de significado e propósito, o que King Jr chamou de uma “morte espiritual” cada vez maior de viver em um ambiente “orientado para as coisas” em vez de “uma sociedade orientada para a pessoa ”, ou o que DH Lawrence simplesmente rotulou de“ o Mamon da ganância mecanizada ”.

Mas, seja a morte de espírito ou significado, ou a morte real da natureza e das pessoas, todos brotam de uma raiz comum: A história única de interesse próprio e sua manifestação lógica, o privado. “Não temos que escapar da Terra”, como a ativista ambiental Vandana Shiva nos exorta na Unidade versus 1% (2019), “temos que escapar das ilusões que escravizam nossas mentes …”

Produzimos e crescemos o suficiente para que cada criança, mulher e homem tenham uma vida boa e digna onde quer que vivam.

Vivemos em um mundo diferente agora. O que quer que tenha sido justificado no passado para superar a pobreza e a escassez não tem mais controle. Hoje, enfrentamos um desafio totalmente diferente. Não muito pouco, mas muito. Não escassez, mas abundância.

No mundo moderno, mais é menos. Na verdade, os custos do crescimento econômico começaram a superar seus benefícios, visíveis na pilhagem do meio ambiente e na escalada da desigualdade. Não precisamos mais de mais, mas sim de uma distribuição melhor e mais justa, a fim de proporcionar prosperidade para todos. Coletivamente, produzimos e crescemos o suficiente para que todas as crianças, mulheres e homens tenham uma vida boa e digna onde quer que vivam. Como comunidade mundial, sabemos mais e criamos mais do que sabemos processar. É uma grande conquista. Devemos comemorar e desfrutar juntos, em vez de permanecer no caminho deplorável de jogar um contra o outro na corrida para sempre, um morrendo de muito e o outro de muito pouco.

E, no entanto, nossos sistemas econômicos dominantes continuam a seguir a extração colonial e a exclusão brutal, criando no processo dois problemas existenciais organicamente relacionados: A perpetuação (e em alguns casos a intensificação) da pobreza e a violação dos limites biofísicos de nosso planeta.

Que trágica ironia é que, no início do século 21, os departamentos de economia do ensino superior em todo o mundo ainda instruam algumas de nossas mentes mais brilhantes em modelos econômicos simplistas sobre a alocação eficiente de recursos escassos, em vez de como construir de forma sustentável uma vida boa com base na abundância de conhecimento e recursos.

Para enfatizar: Perseguindo o bicho-papão da escassez, estamos, agora, no processo de ultrapassar alguns limiares históricos assustadores, alterando a própria constituição da vida e criando um futuro insustentável para nossos filhos e netos. É a barbárie 3.0.

Eu me pergunto se a verdadeira tragédia do privado está em separar o que só pode funcionar enquanto junto, no processo de excluir, individualizar, destruir, alienar e, como conseqüência, minar a criatividade e resiliência inatas de um sistema necessariamente complexo de interação — entre humano e humano, e entre o humano e a natureza.

Estamos vivendo em uma transição histórica. Pode ser uma grande sorte que, nesta conjuntura, ainda tenhamos uma escolha: Acordar ou continuar a cambalear em nosso caminho atual. Se escolhermos o último, como a maioria dos principais especialistas de todo o mundo continuam nos dizendo, “o colapso é muito difícil de evitar”.

Certamente, a história de como chegamos aqui e as opções de mudança de curso são imensamente complexas. No entanto, a razão pela qual o colapso está virtualmente garantido se continuarmos em nosso caminho atual é na verdade muito simples: Excesso.

O calcanhar de Aquiles das economias modernas é a natureza exponencial do crescimento econômico. Com base no que os economistas consideram uma taxa de crescimento “saudável” de cerca de 3 por cento, a economia teria que dobrar de produção aproximadamente a cada 23 anos. Se esse crescimento é difícil de imaginar, é porque é realmente um absurdo. Imagine economias como os Estados Unidos com 16 vezes a produção em 100 anos, 256 vezes em apenas 200 anos ou 5.000 vezes em apenas 300 anos. Há um diagrama na teoria econômica, escreve Kate Raworth em Donut Economics (2018), que “é tão perigoso que nunca é realmente desenhado: O caminho de longo prazo do crescimento do PIB”.

Em vez disso, devemos perguntar: O que realmente valorizamos? E como o medimos? Quando os autores escrevem sobre economias para o bem comum ou para o bem-estar de todos, eles destacam um conjunto de valores muito diferente daqueles baseados na propriedade privada e no ganho privado, que dominam as economias modernas hoje; Não eficiência, mas saúde e resiliência; Não o resultado final, mas o bem-estar coletivo. Eles se baseiam na afirmação moral básica de que, como o jurista Jedediah Purdy coloca em This Land Is Our Land (2019), “o mundo pertence, em princípio, a todos os que nascem nele”.

A maioria das tradições civilizacionais concorda que todos os trazidos a este mundo deveriam ter o mesmo direito de prosperar. Se seguirmos essas tradições, devemos concluir que as culturas “já divididas” em propriedade privada e riqueza estão moralmente falidas. Elas valorizam o privado acima das pessoas.

Valorizamos o que medimos. Quando medimos as coisas erradas, o resultado é perverso

Em O valor de tudo (2019), a economista Mariana Mazzucato aponta para uma falha de pensamento subjacente: “até agora, confundíamos preço com valor”. Economistas e formuladores de políticas criaram um sistema desconectado do mundo real que privilegia as transações de mercado sobre nosso bem-estar pessoal e planetário. Essa também é a lógica circular padrão: Os ganhos são justificados porque algo foi produzido que presumivelmente tem valor; o valor, por sua vez, é definido pela quantidade de rendimentos.

Aqui talvez esteja o ponto crucial de nossa era tecnocrática: Valorizamos o que medimos. Quando medimos as coisas erradas, o resultado é perverso. Hoje, o que é mais importante para uma vida próspera não é considerado em nossos indicadores dominantes de desempenho econômico. Um ambiente natural que continuará a nos fornecer ar fresco, água limpa e solo rico — Não é considerado. Comunidades que educam e nutrem seus membros — Não é considerado. Formas de governança com um grau estável de responsabilidade — Não é considerado. No final: Nossa capacidade de continuar a vida na Terra (o que significa a palavra sustentabilidade) — Não é considerada. Temos um sistema econômico, reflete Lorenzo Fioramonti em Wellbeing Economy (2017), “que não vê valor em nenhum recurso humano ou natural a menos que seja explorado”. O resultado é o que a historiadora médica Julie Livingstone chama de “crescimento autodevorável”. Os desafios triplos de mudança climática, pandemia e racismo sistêmico destacam os defeitos sistêmicos mais profundos.

Talvez seja irrealista esperar que os indivíduos façam escolhas mais inteligentes, quando o raciocínio econômico dominante os recompensa por seguirem na direção errada. Vejo isso a cada primavera, quando alunos talentosos de graduação enfrentam escolhas limitadas para seu futuro: Direito corporativo, consultoria, finanças, medicina altamente especializada. Será que podemos avançar na espoliação de investidores, atraindo consumidores para cada vez mais produtos ou fazendo carreira mentindo para o público, mas tornar virtualmente impossível para aqueles que buscam um futuro sustentável e uma vida equilibrada pagar suas contas?

A urgência do agora pode, em vez disso, exigir uma mudança na lógica operacional, um sistema que apoie os valores essenciais que constituem toda a vida próspera — saúde, diversidade e resiliência. Pode-se chamá-lo de “prosperidade compartilhada dentro dos limites biofísicos” ou, como diz Raworth, “Doughnut Economics (economia de rosquinhas)”.

Seja como for que chamemos, precisamos de uma economia focada no florescimento compartilhado, ao invés da quimera de que mais dinheiro, de alguma forma, um dia magicamente nos levará lá. É um reconhecimento simples e obstinado da realidade.

Além do que é possível, devemos perguntar o que realmente queremos. Talvez a tragédia mais profunda do privado não seja nem mesmo a destruição de nossa casa em nome do interesse próprio, mas perdendo a maior oportunidade da história, deixando de perceber o que os pensadores do passado só podiam sonhar — uma vida livre da necessidade e escassez. Uma cultura onde “o amor ao dinheiro como uma posse”, nas palavras de John Maynard Keynes em 1930, “será reconhecido pelo que é, uma morbidez um tanto repulsiva.” Um futuro, como Vandana Shiva resumiu apropriadamente, em que a “moeda da economia não é dinheiro, [mas] vida”.

É uma pena que as culturas modernas, em sua maior parte, não se deem mais permissão para sonhar e se esforçar por uma vida melhor. Em vez de idolatrar alguma grandeza passada ou falso realismo que nunca existiu, por que não imaginar um adulto crescido e saudável que não é mais prisioneiro do regime de ‘cada vez mais calorias’ — uma mente liberada do ‘amor ao dinheiro’ que o economista da sustentabilidade Tim Jackson idealizou em Prosperity Without Growth (2009). No entanto, pode ser ainda mais. Prosperidade sem prisão mental e cultural, sem o trabalho penoso do trabalho assalariado e a triste redução da vida a análises de custo-benefício — uma vida, nas palavras do poeta Langston Hughes, “onde a ganância não mais mata a alma”.

Pode ser a vida imaginada por teóricos como Adrienne Maree Brown em Estratégia Emergente (2017) e os jovens ativistas do Conselho Internacional da Juventude Indígena, o Movimento para Vidas Negras, Fridays for Future, o Movimento Sunrise ou a Aliança de Economia do Bem-estar. As pessoas em tais grupos estão imaginando a vida em comunidades estáveis ​​e saudáveis, que respeitam as diferenças. Eles imaginam economias regenerativas e livres de carbono, comunidades que oferecem trabalho significativo para todos que o desejam. Eles elaboraram propostas de políticas sofisticadas e criaram relatos detalhados de uma possível economia do bem-estar.

Eles estão lutando pelo que a jurista Amna A Akbar do The New York Times chamou de sistema de governança “cuja lealdade primária é para com as necessidades das pessoas em vez do lucro”. Em suma, ao encontrar nossa soberania pessoal e coletiva, poderíamos, solidários uns com os outros, construir uma sociedade próspera para o bem comum, não apenas para uns poucos eleitos.

Dada a nossa atual situação global, a tentação é descartar todo esse pensamento como idealista e ingênuo. E, no entanto, se você prestar atenção, os sinais de vida estão rompendo o edifício do velho em todos os lugares. Como nos lembra a teórica social Patricia Hill Collins, “sempre há escolha e poder para agir, não importa quão desoladora seja a situação.”

Sim, um futuro de bem-estar sustentável tornará obsoletas muitas habilidades e profissões

A geração dos millenials alemã provocou seus idosos com a missiva Ihr habt keinen Plan (2019), ou “Você não tem um plano” e, em seguida, começou a construir uma visão promissora para as gerações futuras. O intelectual público Rutger Bregman nos pede que finalmente paremos de defender o indefensável. Seu livro Utopia for Realists (2017) está alicerçado em uma profunda constatação: Muitas utopias são mais realistas que a realidade atual, por mais que esta seja defendida como única opção por quem tem terno, diploma universitário impressionante e grandes contas bancárias.

Precisamos ter um amplo diálogo democrático sobre a combinação de políticas que podem funcionar melhor na promoção do bem comum, na superação da tragédia do privado. Uma nova liberdade terá que se aninhar nas realidades da natureza e nos direitos dos outros. Os limites serão redescobertos como essenciais para a liberdade. Isso exigirá transições difíceis — longe do combustível fóssil ou do consumo de carne produzido em massa ou da aceitação da desigualdade galopante. Sim, um futuro de bem-estar sustentável tornará obsoletas muitas habilidades e profissões, provavelmente eliminando mais empregos do que substituindo, abrindo oportunidades para semanas de trabalho mais curtas para todos. Entre os muitos caminhos possíveis, os seguintes recursos principais serão essenciais:

  • Regulamentos locais, nacionais e internacionais evitando a violação de limites ecológicos críticos;
  • Reparo das falhas de mercado mais flagrantes por meio da contabilidade de custo real, valorizando adequadamente o trabalho essencial, terminando com a privatização de ganhos e incluindo a socialização de custos, compensando por serviços ecossistêmicos essenciais e a economia de cuidado
  • Disponibilizar serviços básicos e renda básica para todos (poderíamos chamar de “verdade evidente que todos os terráqueos têm um direito inalienável às condições prévias de vida, liberdade e felicidade”);
  • Acesso ao trabalho para todos, pois todos merecem a oportunidade de dar uma contribuição significativa;
  • Um reconhecimento moral básico de que nada — nem raça, nem nação, nem gênero, nem contribuições pessoais, nem seu código postal — deve ser causa legítima para pobreza extrema ou riqueza excessiva;
  • E, mais fundamentalmente, um reconhecimento básico de que não possuímos ou controlamos este planeta, mas simplesmente o pegamos emprestado “da sétima geração” — aqueles que virão depois de nós. O princípio deve ser sempre, como muitos aprenderam no jardim de infância: ‘Deixe tão bom ou melhor do que você achou’.

Sim, é hora de reescrever o roteiro. Um clima em crise profunda, uma pandemia global, racismo sistêmico e desigualdade são todos partes integrantes do mesmo roteiro ruim, a tragédia do privado, agravada por uma incapacidade (ou falta de vontade?) da elite de contemplar um futuro melhor.

Embora o egoísmo estreito, quando elevado a ideologias a serviço do privado, tenha repetidamente levado o mundo à beira do desastre, até agora sobrevivemos em grande parte por causa de nossa capacidade subjacente de cooperar. Chegou o momento de tornar nossa excepcional capacidade humana de criar e cooperar parte de nossas estruturas de governança — parte da lógica de funcionamento das sociedades modernas. Talvez então possamos trazer à vida o que outros só poderiam imaginar: Um sistema focado no bem-estar das pessoas e do planeta, liberando nossas capacidades individuais e coletivas.

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Artigo de Dirk Philipsen, publicado em Aeon, traduzido e compartilhado como necessidade ética. Dirk Philipsen é historiador da economia e defensor da economia do bem-estar que leciona políticas públicas e história na Duke University, na Carolina do Norte. É membro sênior do Kenan Institute for Ethics. Seu livro mais recente é O pequeno grande número: como o PIB passou a governar o mundo e o que fazer a respeito (2015).

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Marcus Bruzzo
Marcus Bruzzo

Written by Marcus Bruzzo

Master Semiotics of Culture (Tartu, Estonia), Meios e Processos ECA-USP. <<Coord. Design Experiência Digital FTD Educação >> {culture, communication technology}

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