Narrativa Diegética vs. Narrativa Procedural. O UX deve aprender com jogos.
Narrativa em aplicações interativas não é uma coisa simples. E não falamos aqui da complexidade do roteiro, mas de formas narrativas distintas, que podem até mesmo descartar roteiros. Isso porque, como pretendo demonstrar, a narrativa é uma condição imposta à compreensão já que narrativizamos tudo no mundo como forma de conhecê-lo. Mas se nos ativermos às aplicações que provêm espaços de virtualidade com ações e combinações possíveis, encontraremos duas formas de narrativas completamente discrepantes; procedural e diegética. Não há, entretanto, uma hierarquização destas formas, bastando focar em algumas notas interessantes que resultam da observação destas formas de relação humano-máquina.
Aplicações instrumentais como aplicativos no seu celular, sites, sistemas operacionais, e demais sistemas de interface, são formas narrativas tanto procedurais quanto diegéticas. Procedurais quando organizam informação a partir de uma série de escolhas anteriores, como em um formulário, por exemplo. O estado atingido, ou a organização dos elementos é meramente combinatória. Diegéticas quando o acesso à informação não se dá por combinação, mas por um processo guiado, curado, orquestrado por UX e aprumado por uma Arquitetura de Informação.
Para entendermos de fato suas possibilidades, e posteriormente traçarmos suas limitações, precisamos diferenciar Processos Diegéticos, e processos Procedurais.
Narratividade Procedural
É muito comum ouvirmos em rodas de discussão sobre jogos alguns termos como “procedural”, na tentativa de exemplificar o conceito de que há uma relação entre a ação do jogador e os estados de mundo possíveis. A quantidade de ações/verbos que uma aplicação interativa provém, condiz com a quantidade de outcomes de um jogo como sistema programado. Basicamente, se a ação altera o sentido geral da história ou o estado gráfico de um conjunto de elementos do jogo ou da aplicação, então, o que ocorre é “procedural”.
Exemplos extremos do conceito do procedural seriam jogos como No Man’s Sky, que propõem que a combinatoriedade de seus elementos seja tão ampla, que mundos inteiros, com ecossistemas e regras sejam proceduralmente criados por meio de combinações praticamente infinitas sobre alguns princípios básicos. Se você for em um planeta, você encontrará uma espécie de animal, se for em outro, encontrará outra espécie criada proceduralmente. São estados criados, mas apenas criados como resposta a uma ação anterior, e disso decorre dizer que nada existe se não for observado.
O caso é extremo porque este jogo faz do “procedural” o foco central de sua trama, isto é, não há uma história a ser seguida, há a geração de mundos, espaços, faunas e floras como elemento narrativo central. Nesta configuração, o próprio agir é contar a história, que se cria como dependência intrínseca da ação anterior; você é/faz sua história. A ambiguidade do verbo ser/estar é a raiz do procedural:To be em inglês, ou être em francês, em que ambos recebem a tradução tanto de “ser” quanto “estar” em português, são bons exemplos. Ser é estar.
Mas no processo narrativo que se baseia em forma procedural, levando em consideração a construção de aplicações interativas como jogos, há barreiras por ora intransponíveis — tanto técnicas quanto epistemológicas- que afastam do horizonte mais próximo a ambição do conceito de “jogo”, enquanto isso significar a simulação livre e fidedigna da realidade. Isso porque as saídas são combinatórias, e ainda que a combinatoriedade seja exponencial, ela é finita e previsível. A quantidade de combinações possíveis pode ser imensa, mas, sistemicamente, qualquer imprevisibilidade ainda é considerada um erro.
Na usabilidade, ou no design de aplicações/produtos, pela perspectiva da experiência, muito pouco se tem elaborado de aplicações ferramentais que possam prover uma narrativa procedural. Como seria, afinal, um aplicativo procedural? Ora, uma aplicação qualquer que, a partir de um conjunto de informações inserido sobre a condição da vida de uma pessoa, seus horários, ritmos, gostos e necessidades, pudesse prover uma interface completamente adaptada.
- Identificar que a pessoa está ao ar livre, em dia com sol: altera a interface para promover melhor visão.
- Uma Fintech que identifique que o usuário está em um comércio: encontrar e propor descontos e formas de pagamento adequadas reorganizando o app.
- Um aplicativo de transporte que identifique que há fone de ouvido, e permita plena utilização por comando de voz.
Há alguns raros esforços nos sistemas operacionais, com funções como geofancing do Android que ativa e desativa funções do celular quando o usuário chega no trabalho ou em casa. Ainda, o iOS em Driving Mode, que desabilita algumas funções por segurança, como notificações.
Narratividade Diegética
Já a diegética é um conceito provindo originalmente da literatura - e apenas muito mais tardiamente do cinema - e compreende a construção de um universo ficcional (jogo ou simulação) que tem por base a necessidade de que sua compreensão ocorra por meio de uma narrativa, isto é, um fluxo ou continuidade de elementos inter-relacionados no contexto estético proposto. Neste sentido, é semelhante ao ser/estar do método procedural na relação de dependência da narrativa para estabelecer um estado ou identidade, mas ocorre pelo inverso; Aqui, a ação depende da narrativa, lá, a narrativa depende da ação.
O que temos em sistemas nesta configuração é um universo fechado, com signos (símbolos) e regras (códigos), em relações que estruturam sua linguagem interior, ao passo que estas relações, em primeiro lugar, se distinguem da realidade daquele que acompanha a história (espectador, leitor, jogador) em termos de autonomia e, em segundo lugar, possuem uma congruência derivada do sequenciamento temporal dos próprios elementos, isto é, estão relacionados sintagmaticamente (de forma linear) sem que se acesse o “todo” do contexto em um paradigma (de uma só vez).
É importante lembrar que nos estudos literários, estas duas categorias se distinguem normalmente entre Diegética e Mimética, onde à diegética é reservado o sentido afirmado anteriormente, de narratividade, contação, na cultura escrita ou oral, ao passo que na mimética se conserva o valor de demonstração, composição, ou mesmo de uma cena. É natural se utilize de exemplo a explicação que de um lado teríamos o conto, e do outro teríamos a imagem, o que apenas retorna à divisão entre Sintagma e Paradigma.
Para não nos aprofundarmos nas inúmeras questões inerentes a um universo estritamente literário, basta salientarmos que a Diegese com seu sentido etimológico de Narração, conserva a significação relacionada às exposições narrativas próprias da sofisma, na raiz das exposições de defesa do direito, como discurso proferido com intenção de plantar as bases para a subsequente argumentação.
Experiência Como Congruência de Um Sistema
O UX precisa aprender com os jogos a implementar experiências baseadas em narratividade procedural. Se retornarmos aos jogos e aplicações interativas, esta narração se dá pela disposição espacial e temporal com a qual os elementos que compõem o plano geral da trama se apresentam, gradualmente, linearmente, cada qual ressignificando todos os anteriores pela justaposição, e ainda assim, somando para a construção de um “algo maior”. As combinações dos elementos são exponenciais, mas basta que entendamos que as regras para que estas combinações ocorram são sempre deliberações humanas. É fundamental considerar também que, se as regras são humanas, por não poderem ser dinamizadas pela automação da programação como simples combinações, elas são necessariamente culturais. O que faz com que as combinações que gerarão interfaces de contato podem, em certa medida, apresentar cuidado específico como uma curadoria que não define o caminho, mas dá espaço a determinadas manifestações potenciais.
Se considerarmos que Diegese seja um discurso proferido com intenção de plantar as bases para a subsequente argumentação, vale considerar que aplicações ou jogos que optam por este caminho possuem um espaço mais amplo para curadoria de experiência, porque a organização dos elementos segue regras não combinatórias.
É muito comum que na criação de “jornadas do usuário”, que nada mais são do que narrativas diegéticas, uma quantidade de possíveis realizações seja prevista e cuidadosamente projetada. Pela quantidade real de combinações possíveis, este modelo é bastante limitador, gerando uma dezena de caminhos estabelecidos, mas pouco adaptáveis.
Das formas de narratividade que aplicações programadas nos permitem, fica a provocação de que talvez, devêssemos abraçar o procedural na criação de aplicações, garantindo uma base (paradigma) a partir da qual a ação do usuário estabelecesse uma nova condição, e pensarmos que haja estados de uma aplicação que possam ser únicos a cada usuário, já não seria um absurdo se considerarmos o nível em que os jogos já, tão bem, conseguem aplicar este conceito.