A origem do Jogo e o processo de aquisição linguística
O jogo está em tudo como o “jogar” está em tudo. Incluo aqui os jogos de celulares, os jogos de consoles como plataformas específicas, e os jogos de computador — que embora sejam praticamente os mesmos daqueles das plataformas, possuem a particularidade de funcionarem em máquinas não destinadas originalmente a este fim. Mas trato de Jogos em um sentido mais amplo e anterior; como fenômeno antropológico. Eles remetem àquelas já clássicas pesquisas de Johan Huizinga em Homo Ludens, isto é, são processos humanos de simulação através da criação de espaços e tempos específicos onde regras também específicas se aplicam a um determinado fim. Jogo tem objetivo, regra (muitas vezes competição) e sobretudo, começo, meio e fim, ou seja, um contexto que confere sua validade. Mas é importante salientar que Jogo para Huizinga precede a cultura como criação humana, posto que se encontra enraizado nas relações de outras espécies animais e a elas não se atribui o mesmo conceito de cultura.
Animais, como mamíferos superiores, jogam e seus jogos possuem semelhantes regras; nota-se também que o momento de jogo é delimitado com um começo e um fim bem definidos, e neste aspecto a etologia provém grandes exemplos — os famosos casos da ludicidade dos gansos de Konrad Lorenz podem servir bem aqui. Animais são comprovadamente seres lúdicos (semióticos) por serem capazes de lidar com elementos in absentia, objetos ausentes, metáforas.
Mas o “jogo” é um fenômeno que gira em torno de algo muito complexo, que até Huizinga se absteve de tentar responder, que é o “divertimento” relacionado à simulação. Esse fenômeno psicológico se manifesta no jogo como se manifesta na brincadeira das crianças, que é, sobretudo, um jogo, no sentido fundamental de simulação. A diversão parece estar relacionada à simulação como prática de autonomia, mas esta absorção pelo jogo não ficou clara à época de Huizinga pelas explicações da biologia. Isto porque o fenômeno deva talvez ser investigado em esferas superiores de complexidade cultural, às quais o prazer do divertimento encontre paralelos às ambições das disciplinas de pesquisa sobre poder, luta por reconhecimento, construção de identidade e teorias do discurso. São questões biológicas apenas enquanto “sociedade” seja tomada como fenômeno biológico.
Duas vias: a dialética do jogo
Tomasello, um dos maiores pesquisadores do desenvolvimento da linguagem humana, identifica no processo de aquisição do conhecimento simbólico duas vias de relações que são, fundamentalmente, um jogo. Organizando a leitura de Tomasello que é específica do processo de aquisição linguística, em coleções de pesquisas com crianças da primeira e segunda infâncias do mundo todo, eu coloco nos termos simbólico e icônico, que se relacionam de forma mais clara com os estudos dos jogos como articulações epistêmicas correlatas aos estudos da linguagem.
Nesta monta, o primeiro movimento é Simbólico: Isso significa que na relação de aprendizado, o adulto representa um conjunto de ações arbitrárias que devem conferir algum sentido a uma determinada “circunstância” da vida. A criança deve ser capaz de compreender esta “circunstância” como um caso autônomo e singular, ao qual se confere uma identificação ativa, um verbo infinitivo, por exemplo, “estudar”, “obedecer”, “se arrumar”, “brincar”. As circunstâncias são demonstradas simbolicamente porque suas regras são necessariamente arbitrárias, isto é, suas relações não possuem qualquer congruência natural, mas são basicamente disposições impostas culturalmente: As regras do Estudar, como, quando e onde “Obedecer”, as condutas para se Arrumar, e finalmente, as regras, momentos e ordenações da conduta de “brincar”. Estas definições, embora arbitrárias, cumprem a função de distinção entre momentos do jogo social, e o conjunto de regras determina a clareza da diferenciação entre momento “brincar” e momento “estudar”. A confusão destas condutas é prontamente advertida pelo adulto que inculca estes conjuntos de ações à criança; “isso não é hora de brincar”, diz. “Hora de brincar” subentende que haja um momento cuja ordenação cognitiva das relações de postura e ação, assim como que haja possibilidades combinatórias inerentes a este momento, que não podem ser misturadas com outro contexto. São as regras do jogo.
Prova desta arbitrariedade é a disposição inicial da criança a questionar cada passo das condutas, ou regras, porque a grosso modo, nenhuma destas regras corresponde a qualquer imposição natural ou de necessidade; Por que devo ficar de pé na missa? Por que eu devo ficar quieto agora? Por que devo vestir isso? Por que não posso falar aquilo? Veja que as questões não se tratam da real potencialidade destas ações, todas elas são possíveis ações do jogador, mas devem ser executadas dentro de um contexto para que façam sentido a quem concebe e mantém o jogo.
Estas imposições simbólicas de códigos (condutas) a uma circunstância qualquer é a primeira parte do processo, seguida da relação icônica que se baseia em mimética ou, como “iconismo” significa, é relacionada por semelhança; aqui começa o jogo de facto. Uma vez apreendida a sucessão de condutas simbolicamente dispostas, Tomasello aponta que a inserção do indivíduo às circunstâncias se dá pela repetição dos atos em sequências a fim de representar iconicamente a circunstância real. Essa simulação, que é fundamentalmente um jogo, é realizada pela infante para testar a si própria ao passo que neste processo testa as próprias regras deste novo jogo. O teste de limites que as crianças fazem é um fenômeno bastante reconhecido pelos pais. Mas o detalhe singular é que não existe ação real; a partir da mímese, todos os atos da vida do indivíduo serão articulações miméticas, cópias, recombinações, ou seja, todos os atos da vida são simulação do ato original. E o próprio ato original foi, no fundo, uma simulação observada.
Em Cultural Origins of Human Cognition, Tomasello escreve:
The overall picture is this. To acquire the conventional use of a linguistic symbol, the child must be able to determine the adult’s communicative intentions (the adult’s intentions toward her attention) and then engage in a process of role-reversal imitation in which she uses the new symbol toward the adult in the same way and for the same communicative purpose that the adult used it toward her. (p.117)
Ainda, na aquisição da linguagem como uma forma de autonomia de articulação dentro de um contexto, ocorre um processo de mapeamento, como Tomasello aponta segundo o estudo de Langacker, em três níveis de leitura das “operações construtivas” separados por complexidade.
• Granulidade-especificidade (cadeira da mesa, cadeira, móvel, coisa);
• Perspectiva (seguir-fugir, comprar-vender, vir-ir, emprestar-pegar); e
• Função (pai, advogado, homem, convidado, americano.)
Dentro do jogo, assim como na constituição cognitiva da comunicação, temos dos movimentos então: A arbitrariedade da instituição de novas regras (Simbólico), de pronto questionadas e apreendidas, e em seguida, a repetição das condutas ou regras por semelhança (Icônico) a fim de reconstruir o contexto por meio do verbo/ação. Estas operações, na origem linguística humana, ocorrem pela manipulação dos elementos dispostos dentro de um contexto específico (e Tomasello não economiza em salientar a importância da delimitação dos contextos) nos três níveis de complexidade citados, sendo a “granularidade” ou especificidade dos objetos, em seguida a sua perspectiva ou relação como possibilidade combinatória, e por último o conceito de função destes elementos dentro do contexto.
Jogos como metáforas
A construção dos jogos como itens de simulação apresentam ambos elementos; A dialética da troca do simbólico ao icônico pela imposição de regra e a repetição dela, e a operação dos elementos dispostos nos três níveis de Langacker, tanto no processo de aquisição da linguagem por parte das crianças, quanto no processo de imersão do jogador no jogo como contexto cujas regras são apreendidas.
Pensando em um jogo como sistema - ressaltando que jogos são em sua configuração idênticos ao processo de aquisição linguística- na esteira de Tomasello, as operações possíveis permitem com que as relações dos elementos internos do jogo ocorram por justaposição. Para critérios de pesquisa, isso significa que a repetição ou insistência de determinados termos ou conceitos indicam a presença de um contexto afixado, como no exemplo que ele provém, em que os termos “costa”, ou “praia”, ou “litoral”, possam ser utilizados para o anúncio de um mesmo imóvel, dependendo do contexto de enunciação e o valor que se deseja agregar a ele. A repetição de termos por crianças é também sinal de que estes termos estejam vinculados a contextos; repetir se deve ao exercício de justaposição dos contextos com fins de testar seus limites de aplicação.
Não é raro que, quando associar “auau” a cachorro como uma circunstância ensinada a ser favorável, de amizade, graça, e certos riscos porque “o auau morde”, a criança aplique “auau” a outros itens do mundo que se assemelhem a estas mesmas condições, como outros animais que vir pela rua. Mas apontar para o gato e dizer “auau”, prontamente corrigido pelo adulto, não é um erro em sua essência e não cessa ao longo da vida, apenas muda suas intenções. O domínio completo do jogador ou do infante sobre o contexto, já na fase de reprodução, permite que surjam metáforas como agressivas sobreposições dos elementos compreendidos. Estas metáforas ocorrem seja na fase de granulidade (desenhos cumprem este papel com “garoto-esponja” em Bob Esponja, ou qualquer outra personagem que seja um objeto misturado com outro), perspectiva (mais tarde, com o trabalho de sobreposições de perspectiva como “menina fora dos padrões que luta por reconhecimento”, “menino fraco que luta por seus sonhos”, etc) ou mesmo função, em última instância, com metáforas como o Batman: homem rico justiceiro.
O apelo dos super-heróis se deve, em grande parte, à função primária de relação de granulidade como “homem-morcego”, “homem-aranha”, e seu apelo infantil de metáforas deste primeiro nível, pela simplicidade das possibilidades destas combinações .
Já as articulações metafóricas são domínios maduros dos contextos dados (na aquisição da linguagem, e ocorrem após a primeira infância, geralmente transparecem com o início da capacidade de mentir), e residem na assinatura moral de um jogo como simulação. Em outras palavras, a articulação dos elementos dispostos no interior do jogo deve permitir uma leitura de ordem moral superior, mais complexa, através da justaposição destes próprios elementos. Metáforas são combinações que o jogador executa, qualquer combinação entre elementos postos em jogo, uma arma e um inimigo, uma caixa e um patamar a se alcançar, um elemento que empurrado modifica o campo de conflito. De qualquer jogo se pode extrair um conceito moral, ainda que não seja sua ambição inicial, pelo simples fato de que o cruzamento de qualquer elemento (granular, perspectiva ou função) dá luz a uma metáfora (ou metonímia).
Isso tem profunda relação com a cognição humana, porque a construção linguística é baseada em cenas (Tomasello, p.120), que envelopam contextos a partir dos quais — e só então - os símbolos recebem seus sentidos.
Disso tudo, vale dizer que a comunicação, como jogo que é, possui duas vias: a simbólica e a Icônica. A simbólica de apresentação de regras arbitrárias: todo jogo impõe regras às quais “jogar” significa testar suas combinações. E a via icônica, que subentende a reprodução destas regras já apreendidas. A gradação do jogo consiste na qualidade da execução destes procedimentos por mímese e experimentação frente aos objetivos do contexto (ou cena), traduzidos em pontuação ou outras métricas de ciência da economia.
Desta autonomia do jogador (ou criança no percurso do aprendizado), o sinal de domínio do contexto é a capacidade de criação de metáforas, que no jogo, se traduzem como combinações autônomas realizadas dentro das possibilidades previamente dispostas.
O jogador deve ser um criador de metáforas, no ambiente da simulação, como a criança é naturalmente poetisa, no ambiente da aquisição da linguagem, porque tanto o jogo quanto o contexto social, são em última análise, simulações culturais.
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Tomasello, Michael — THE CULTURAL ORIGINS OF HUMAN COGNITION. Harvard University Press, 1999.